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O ano em que meu pai saiu de férias

I

Abril de 1964. Tenho apenas quatro anos de idade. Acordo de noite, não sei bem o motivo, mas vou para o quarto da minha mãe. Ela está na cama sozinha, meu pai não está no quarto. Tento perguntar por papai, mas ela apenas se esquiva com respostas simples de que ele teria saído para trabalhar, para resolver algo.

“O que eu tenho na memória é a noite do golpe”; “Eu percebi um sinistro no ar no dia. Essa lembrança eu tenho na minha cabeça. Ás vezes eu digo ‘será que eu sonhei?’, mas eu sempre tive essa lembrança”.

Meu pai, que é engenheiro, diz que está trabalhando nesse novo local, com uns tratores que ocupavam uma obra em frente. Esse trabalho, entretanto, parece muito mais difícil, pois meu pai nunca volta para casa. Até que em um momento de desconfiança, questiono: “papai, você tá ‘pleso’?”. Ele apenas ri para mim. Nessas visitas encontro também antigos amigos da nossa família, que agora moram junto ao meu pai em quartos sem porta com muitas camas. Já outro dia, enquanto brincava no sofá creme que ficava no saguão, encontrei algo ainda mais curioso. Escondido embaixo das almofadas, o sofá tinha fios e pilhas! Meu pai também ficou assustado. Agora que meu pai voltou pra casa, vivo sempre atrás dele, não desgrudo, pois não quero que ele suma de novo. De vez em quando eu sinto o clima mais tenso, principalmente com minha mãe, que escuta boatos sobre outras pessoas sendo levadas para esses trabalhos e fica preocupadíssima com meu pai.

“Não lembro muito de como era minha vida em casa nessa época. Mas eu me lembro de visitá-lo algumas vezes aos domingos (…)”; “Ele ficou oito meses preso e depois em prisão domiciliar por um mês”.

Minha mãe sempre cuida muito de mim e das minhas irmãs mais novas e nos explica que não devemos falar tudo na escola. Mas quando ela demora a aparecer para nos buscar, não sei por que, sinto uma forte angústia e termino chorando. Algumas vezes a escola passa uns trabalhos sobre a revolução. Meu pai odeia quando eles usam esse termo, diz que foi um golpe. Já minha mãe me proíbe e reclama “esse trabalho você não faz!”.

“Havia umas certas recomendações que minha mãe me dava sobre o que falar na escola”.

Agora na juventude, tenho a consciência do que se passa, e passou, durante toda a minha infância. Mas o que me impressiona é que eu nunca vejo meu pai falar com ódio de ninguém. Como foi prefeito três vezes da cidade, ele é tido com muito respeito pelas pessoas. Tenho orgulho dele, mas essa “fama” às vezes cansa um pouco. Como fã dos The Beatles, decidi formar uma banda, de rock com mais três amigos meus, chamada “Aratanha Azul”. É uma forma de fugir um pouco do clima de repressão dessa década de 70. A juventude está muito inclinada à militância esses dias, principalmente devido a figuras como Chico Buarque, que faz muito sucesso. Nossas canções também trazem letras críticas ao regime, o que nos fez ter letras censuradas, mas temos o diferencial de ser contra essa gente careta. O Aratanha é para cima! Por enquanto consegui também participar tocando baixo-acústico na Orquestra Sinfônica do Recife.

“Talvez eu tenha ido num caminho oposto à política durante um tempo. Talvez pelo mal que isso tenha feito para ele”. “A música pra mim foi algo que me desvinculou disso tudo”.

A noite do golpe, agora adulto eu sei, é uma lembrança muito pontual, rodeada pela escuridão do esquecimento. Por mais estranho que pareça, não é uma memória ruim, nem boa, mas permanece marcada na minha memória infantil por motivos igualmente nebulosos. “Talvez eu tenha apagado algumas coisas da minha memória… até pra me proteger, mas essa é uma lembrança que eu tenho na minha cabeça”. É na infância que a pessoa se torna indivíduo. Nesta fase, a memória está suscetível a todo tipo de influência, pois a mente de uma criança está livre de filtros, preconceitos e interesses. É nessa fase em que estamos mais propícios a passar por traumas incorrigíveis de épocas sombrias, mas também é nela na qual fundamos os princípios de caráter responsáveis por quem somos e sempre seremos.1

II

A trajetória da república brasileira até os dias atuais consta com um longo caminho marcado por instabilidades, eventos históricos e golpes. Entre esses episódios, há o inesquecível golpe militar de 64, consolidado em um regime que durou 21 anos, de 1964 até 1985.

Essa fase da história brasileira está presente nos relatos e na memória do povo. Nos deparamos constantemente com relativizações acerca dos acontecimentos desse período. Isto é, pontos de vista que simultaneamente convergem e divergem sobre juízos de valor. Tais relativizações – houve ou não ditadura, por exemplo -, quando surgem por parte de indivíduos com mais idade, estão sob o filtro da vivência de cada cidadão naquele período e de como suas vidas foram afetadas ou não pela conjuntura política da época. É comum a juventude de hoje ter uma opinião formada sobre este tema, desenvolvendo certos juízos de valor sobre um tempo que não foi vivido por eles, mas que está presente em relatos de familiares, estudos na disciplina de História no colégio ou em plataformas digitais na internet.

Segundo a professora Cíntia Sales, as pesquisas sobre como os adolescentes aprendem História ainda são muito recentes. Por mais assustador que seja esta afirmação, o campo da história não se preocupava muito com a aprendizagem de seus conteúdos. Havia uma maior centralidade para as discussões dos vários momentos históricos dos vários locais do mundo em detrimento de como os estudantes absorvem tais conhecimentos.

Em relação ao regime militar e outros temas mais sensíveis e relativizados como escravidão e o nazismo na Alemanha, em uma instituição como a Escola Técnica Estadual Professor Agamenon Magalhães, Cintia comenta sobre os métodos de ensino utilizados. Sendo uma escola de médio porte, com cerca de 400 alunos matriculados, a ETEPAM aborda o tema do Regime Militar na disciplina de história por meio de um projeto chamado Adote Uma Memória. Mesmo trazendo uma didática mais participativa, que por sua vez busca acionar uma maior empatia dos alunos para com o assunto, Cintia percebe que o assunto ainda não está solidificado.

O que faz a ETEPAM colocar esse tema como crucial, sobretudo nesse momento político que o país está vivendo agora, é uma das nuances que surgem sobre o golpe militar. Em primeiro lugar, existem estudos na América Latina e sobretudo na Argentina, dizendo que não basta lembrar. Apesar de a ditadura na Argentina ter durado menos tempo que a no Brasil (7 anos), o povo sentiu. Foram cerca de 30 mil pessoas mortas, trabalhadores, sindicalistas, entre outras. No caso do Brasil, a oposição ao golpe cresceu na base da classe média: jornalistas, estudantes universitários dos mais diversos cursos, além de sindicados e movimentos estudantis. Porém, não foi o povão que foi às ruas lutar contra a ditadura. A população não sentiu, nesses 21 anos, a dor da ditadura. Não é à toa que existem pessoas que pedem por uma intervenção militar até os dias atuais.

Qual foi a memória que ficou da ditadura? Para toda a oposição, seja ela militante ou não, a marca é a da repreensão, da dureza, da morte e da tortura. Outra parte ficou com a sensação de segurança, emprego; não eram engajados com política e nem com a situação em que o país vivia.

Hoje, Cíntia se preocupa em como trazer esse tema da ditadura militar para a sala de aula e como fazer os alunos sentirem mais empatia, sendo essa uma das questões centrais do projeto Adote Uma Memória, que em 2018 completou 6 anos de existência. Por outro lado, Cíntia tem percebido que saber das torturas, da censura e das mortes durante a ditadura não é o suficiente para os estudantes. Caso fosse, todos os alunos das seis levas de estudantes que passaram pelos seis anos do projeto perceberiam, sentiriam a dor do outro e veriam com criticidade o que foi a ditadura militar.

Afinal, para quem esses 21 anos foi bom e para quem foi ruim? É possível distinguir um meio termo ou os tons de cinza da situação? Cintia responde essas questões ao analisar que não sofreram as consequências uma boa parte da população que, ou seus familiares eram militares ou não tinham envolvimento nenhum com nada político, era o cidadão bem comum que não quis enxergar o outro e não quis sentir empatia pela dor do outro. Acrescentando à reflexão, Cíntia faz alusão ao que ocorria no nazismo, onde era comum o cidadão alemão perceber que seus vizinhos judeus foram pegos e não se envolviam com aquilo, com o fato de o vizinho e toda a sua família desaparecer. Você pode muito bem estar no regime ditatorial sabendo que o presidente do seu sindicato foi preso; sabendo que o sindicato em si tinha que ser clandestino; saber, mesmo que no burburinho, que tal jornalista foi preso; saber que eu não posso manifestar a minha opinião. É meio que o indivíduo se anular porque tem comida, casa e “segurança”.

Por outro lado, para a população indígena, que lutava -e luta até hoje- pela demarcação de suas terras e por seus direitos; para a classe sindicalista e a jornalística que estavam ali cumprindo o seu ofício; e para os professores, já que o ensino de história sofreu modificações nesse momento, foi um péssimo período.

Cíntia afirma que apesar de muitos defenderem a bandeira da escola sem partido, dizendo que os professores doutrinam, isso não acontece. As poucas aulas de história que constam na grade curricular do país muitas vezes não conseguem impactar os estudantes para a História, nem para os temas sensíveis como ditadura e escravidão.2

1- Esta narrativa foi produzida a partir das memórias do músico Thales Silveira. Os relatos usados como base para o texto são da matéria “Filhos do Golpe”, produzida pelo Diário de Pernambuco em 2014, e uma entrevista realizada com o músico no dia 31 de outubro de 2018.

2- Texto baseado na reflexão crítica de Cíntia Sales, professora de história da Escola Técnica Estadual Professor Agamenon Magalhães (ETEPAM) em entrevista no dia 31 de outubro de 2018.