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Para onde vão os ambulantes da Conde da Boa Vista?

A avenida Conde da Boa Vista passa por um processo de requalificação desde abril de 2019. Dividido em seis fases e com investimento total de R$ 15 milhões, o projeto está andando em ritmo acelerado. As duas primeiras etapas foram concluídas dois meses antes do estimado e a requalificação pode terminar antes de novembro de 2020, prazo previsto para conclusão das obras. Hoje, já na quarta etapa, o projeto pode acentuar a desigualdade social vivida pelos ambulantes da via, isso porque fica a pergunta: para onde vão essas pessoas que trabalham no comércio informal depois das reformas?

A quantidade de comerciantes informais nas calçadas da avenida é um fator que dificulta a passagem dos transeuntes. São pelo menos 324 ambulantes dividindo o espaço correspondente a 1,6 quilômetros da avenida com cerca de 310 mil pessoas circulando diariamente neste tradicional ponto urbano do imaginário recifense. Contudo, a sexta etapa da requalificação é dedicada à realocação de apenas 100 ambulantes, dispostos em 50 quiosques.

O secretário de Mobilidade e Controle Urbano, João Braga, conta que o projeto é necessário principalmente para a segurança das pessoas que andam pela via: “A Conde da Boa Vista sempre foi um cartão postal da cidade do Recife e ao longo do tempo ela foi muito degradada através de ocupações irregulares. A questão inicial a ser observada pelos desenvolvedores do projeto foi a priorização do pedestre. A avenida chegou a um estágio em que você tinha que olhar de um lado para o outro e saber de que lado você queria ser atropelado porque não tinha nenhuma condição de fazer uma passagem segura por ali”.

A primeira proposta de realocação dos ambulantes da Conde da Boa Vista foi feita pela Empresa de Manutenção e Limpeza Urbana (Emlurb) e contemplava 50 ambulantes. Com o objetivo de ampliar o número de beneficiados, o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Comércio Informal do Recife (Sintraci) realizou protestos contra a falta de diálogo da prefeitura e procurou o curso de Arquitetura da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) para pensar em soluções que aumentassem o número de beneficiados na requalificação. Em parceria com o vereador Ivan Moraes, do PSol, e com o Fab Lab Recife, a Unicap promoveu workshops abertos ao público e com participação dos ambulantes para entender as demandas deles. O resultado foi a ampliação para 100 ambulantes contemplados, bem como a criação de um modelo de quiosque que atendesse às suas necessidades.

A justificativa da Secretaria de Mobilidade e Controle Urbano (SEMOC) para a discrepância entre o total de 324 ambulantes e os 100 futuros realocados é a existência de um cadastro de 94 desses comerciantes feito pela Prefeitura do Recife em 2014, cinco anos atrás, mas que, de acordo com João Braga, mantém atualizações regulares. Ainda segundo o secretário, uma equipe de seis pessoas monitora diariamente a localização dos ambulantes cadastrados. “Não tem nada do que a gente implante que não seja com muita transparência e com muito aviso prévio”, explica Braga.

Com 1,20m x 1,00m de dimensão, o quiosque é feito de uma chapa metálica pintada na cor cinza médio, possui uma tela metálica por dentro e acomoda a mercadoria de dois ambulantes. A tampa de 80 cm abre para cima, formando uma área coberta. Os comerciantes que ocuparem o boxe serão regularizados e vão precisar pagar uma taxa no valor de 30 a 40 reais por mês, além das contas individuais de luz e água. As calçadas também se adequaram para o projeto e foram divididas em uma “faixa de serviço” para os ambulantes, na cor cinza, e uma “faixa de passagem” para os transeuntes, na cor vermelha.

Protótipo do quiosque instalado no cruzamento da avenida com a rua da Aurora

O processo de criação dos quiosques faz parte do Plano Centro Cidadão da Unicap, projeto de pesquisa urbanística sobre o Centro Expandido Continental do Recife, que atuou entre os anos de 2015 e 2018. De acordo com a coordenadora do projeto dos quiosques e professora do curso de Arquitetura da Unicap, Paula Maciel, o comércio informal no centro do Recife pode contribuir de forma positiva para a cidade, por gerar um sentimento de segurança no local. “Muitas vezes em uma parada de ônibus tem uma pessoa vendendo algum produto, e quem passa se sente mais seguro, principalmente na parte da noite quando tem menos gente na rua”, ressalta Paula.

O ambulante Marcelo Alves, 49 anos, acredita que os 224 que não vão ser realocados possivelmente vão para as ruas transversais da avenida: “Quem não foi contemplado com um boxe não pode ficar aqui, vai ter que ir para as transversais”. Ao ser questionado sobre as vendas, ele conta que sua renda deve mudar consideravelmente, já que a escolha do local determina a quantidade de pessoas que ele alcança com seus produtos: “A minha venda vai cair com certeza, não tenho dúvidas. Para quem vai para as transversais deve cair mais ainda”. João Braga afirma que a ideia é que os contemplados com o quiosque fiquem o mais próximo possível do ponto em que anteriormente trabalhavam, mas a distância entre os boxes é inevitável e afetará a movimentação nas vendas.

Informalidade

Em 2018, uma pesquisa realizada no Rio de Janeiro pelo grupo Observatório das Metrópoles mostrou como a relação entre o aumento no número de desempregados e o início da crise econômica em 2015 é perceptível. “Há várias evidências de que a política de austeridade adotada pelo governo federal, a partir de 2015 e aprofundada após o golpe parlamentar de 2016, acentuou as situações de violação dos direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais da população e acirrou as desigualdades no país”, aponta o relatório do grupo.

Com o país ainda se recuperando lentamente dessa crise, muitas pessoas desempregadas encontraram no comércio informal uma alternativa para garantir seu sustento. De julho a setembro deste ano, o percentual do desemprego fechou em 11,8%, atingindo 12,5 milhões de pessoas no Brasil, de acordo com o IBGE. Em comparação aos meses de abril a junho, a taxa de desempregados recuou 2%, mas a informalidade bateu recorde. Ou seja, existe uma falsa impressão de que a geração de emprego aumentou, mas a realidade é que as pessoas estão apelando a condições informais para garantir a renda mensal.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio trimestral (PNAD Contínua) do IBGE aponta que 41,4% dos ocupados estão na informalidade, sendo mais 38 milhões de brasileiros. Nessa estimativa, 24,4 milhões de pessoas trabalham por conta própria, como é o caso dos ambulantes da Boa Vista. Esse recorde de informalidade no país aponta um aumento de 1,2% (mais 293 mil pessoas) frente aos meses anteriores a julho de 2019 e de 4,3% (mais 1,0 milhão de pessoas) em relação ao mesmo período de 2018.

O crescente número de pessoas no trabalho informal é consequência direta das altas taxas de desemprego no país. Na busca da sobrevivência pessoal e dos seus dependentes financeiros, esses trabalhadores se submetem à situação de “subemprego”, na qual sua ocupação e renda são muito imprecisas. Além da instabilidade, umas das marcas dessa condição é o crescimento profissional quase inexistente e a ausência de seguridade através de benefícios trabalhistas. Justamente devido à falta de regularização, muitos desses trabalhadores têm que continuar em atividade mesmo na terceira idade.

O subemprego a que os trabalhadores informais na Boa Vista estão submetidos não é a única sinalização de desigualdade social. É possível também considerar a requalificação da avenida como um processo de gentrificação. Ou seja, um recurso da especulação imobiliária que utiliza o dinheiro público para atender à demanda de interesses privados.

Além de caracterizar um cenário típico da rotina na capital pernambucana, o comércio informal no centro da cidade do Recife também contribui fortemente para a economia. Segundo um relatório feito pelo mandato do vereador Ivan Moraes, em parceria com duas mestres em Sociologia pela UFPE, Ana Cecília Cuentro e Marília Gomes do Nascimento, os 324 ambulantes da avenida movimentam mais de 4,5 milhões de reais por ano.

No que diz respeito à regulamentação da atividade informal em Recife, existe uma lacuna na legislação. As leis municipais que tratam do comércio informal são insuficientes e colocam os trabalhadores desse setor em uma situação delicada perante o legislativo e o judiciário. Exemplo disso é a lei 17.935/2013, que confere à Companhia de Serviços Urbanos do Recife (CSURB) a atribuição de gerenciar e administrar o comércio informal na cidade do recife, inclusive o comércio ambulante.

Na íntegra, a lei ainda determina que é dever do Estado “promover, planejar e elaborar estudos e projetos que contemplem a concepção e/ou a requalificação dos mercados públicos e reordenamento do comércio informal, seus estornos e áreas de sua influência; regulamentar e organizar o comércio informal, instalados irregularmente nas vias públicas; executar ações que visem à mobilidade Urbana no entorno dos mercados públicos e áreas de sua influência”. Entretanto, essas delimitações são muito frágeis e não conseguem abarcar toda a atuação dos ambulantes e da polícia, uma vez que nem especifica o que seria um comércio instalado irregularmente e nem explica como são as ações que visam a mobilidade.


Perfil dos ambulantes

final, quem são os ambulantes que trabalham na avenida Conde da Boa Vista? Tratar o assunto apenas com as estatísticas do IBGE não é o suficiente para entender como a vida dessas pessoas e a dinâmica do centro de Recife pode mudar com a requalificação. Além disso, compreender o perfil socioeconômico deles é também identificar qual é a realidade de quem vive do comércio informal nesse trecho.

O relatório das sociólogas Ana Cecília e Marília Gomes dá conta dessa demanda. Entre os dias 11 a 15 de março de 2019, elas entrevistaram todos os trabalhadores do comércio informal na via, incluindo os que estão nas esquinas com as transversais, durante os três turnos (manhã, tarde e noite). Registraram 324 ambulantes, porém 20 não quiserem responder ao questionário da pesquisa. Os dados levantados por elas correspondem aos 304 que concordaram em participar.

Assim, foi possível descobrir que a maioria são homens negros entre 30 e 59 anos. Quanto à escolaridade, mais da metade dos ambulantes não possuem ensino médio completo. Ao cruzar os dados de raça/cor com escolaridade, as sociólogas notaram que 75,8% dos entrevistados negros não concluíram o ensino fundamental. É um dado expressivo que destaca a marca histórica da desigualdade social no Brasil, não só em Recife. Dessa forma, foi concluído na pesquisa que os entrevistados negros têm menor grau de escolaridade em relação aos brancos.

Isso implica em uma dificuldade muito maior de se inserir no mercado de trabalho formal, que está cada vez mais exigente, além de representar um contexto de vulnerabilidade social mais acentuado para os negros. Quase 70% dos ambulantes afirmam que trabalham na informalidade pela dificuldade de encontrar emprego. Além disso, praticamente todos os ambulantes têm como única renda o comércio informal e mais de 80% possuem dependentes financeiros, ou seja, sustentam outras pessoas com essa renda.

A ausência de direitos assegurados também é uma das marcas da informalidade. Mais da metade trabalha de 8 a 12 horas por dia, ficando fora do que a legislação trabalhista considera aceitável, que é uma jornada diária de 8 horas e 44 horas semanais. Como não existe renda mensal fixa, os ambulantes precisam trabalhar mais para conseguir um valor equivalente a um salário mínimo (R$ 998,00) para cima. Não há seguro desemprego, seguro de acidente de trabalho, férias e nem direito à aposentadoria.

Desde o surgimento do projeto na campanha de reeleição do prefeito Geraldo Júlio, em 2016, houve muitas incertezas sobre a situação dos ambulantes da via. Ao longo da cobertura midiática, é possível notar a imprecisão em dados como o número de pessoas inicialmente contempladas com os quiosques, que varia entre 40, 50 e 60. Da mesma forma, a falta de consenso surge no número de comerciantes na via, que chega a registrar 94, 300, 400 e até mesmo 500 ambulantes, dependendo das fontes consultadas.

Segundo a Prefeitura do Recife, o protagonismo do projeto é do cidadão que circula a pé pelo centro da cidade, que configura o maior percentual de deslocamento na via. Isso faz parte de uma tendência do último semestre de 2019 por parte da administração público em “humanizar” áreas da cidade com requalificações em alguns trajetos, como a ampliação das calçadas na Rua do Príncipe e a proibição do tráfego de carros na Rua da Moeda. No entanto, ao buscar humanizar o espaço urbano, é preciso refletir e questionar quem de fato são as pessoas beneficiadas e quem são os prejudicados.

Apesar da requalificação garantir calçadas mais confortáveis, ruas mais organizadas, mais pontos para o descarte de lixo e mais iluminação durante a noite, realocar apenas 100 de 324 ambulantes que tiram sua renda mensal do comércio informal e possuem dependentes financeiros é aprofundar ainda mais a desigualdade social no centro do Recife. Além disso, a lacuna na legislação mostra como a lei é imprecisa e abre brechas para abuso de autoridade pelas polícias em casos de ação de controle urbano e confiscação de bens, legalizando uma atitude arbitrária, sem que os comerciantes possam se defender em nenhum órgão oficial do governo. Isso representa um risco ainda maior considerando que o perfil padrão do ambulante da Conde da Boa Vista é, justamente, o mais abordado arbitrariamente por policiais.